segunda-feira, 2 de maio de 2011

O juiz garantidor

José Luiz Oliveira de Almeida
Desembargador

Desde que assumi a segunda instância tenho me deparado, com muita frequência, com  desrespeitos  a  comezinhos direitos dos acusados, em algumas decisões de primeira instância, sobretudo no que concerne às prisões provisórias ( sem fundamentação) e à aplicação da pena ( via conceitos vagos e,  não raro, com dupla valoração de determinadas  modeladoras judiciais).

Claro que eu posso, sim, com muita probabilidade, ao tempo em que militava na primeira instância, sem muito tempo para refletir, sem condições de estudar a fundo as questões  submetidas à minha intelecção, ter agido da mesma forma, mesmo porque não antevejo nas decisões a que me reporta nenhum sentimento menor a  mover a ação do magistrado.

A  minha situação hoje, com uma demanda mais contida, com um bom quadro de assessores, me permite analisar as questões com muito mais vagar. E, mais importante ainda:  a “distância” dos acontecimentos  me permite, sim, maior isenção no exames das questões a  mim submetidas; isenção que, muitas vezes, não se  há de negar,  pode, sim, ser prejudicada estando-se envolvido emocionalmente, dada a proximidade física, com a peleja das partes.

É inegável que estar defronte, por exemplo, de uma vítima de um assalto, arrasada psicologicamente pelos acontecimentos,  brutalizada fisicamente por um meliante, de certa forma influencia as nossas posições. E não pode ser diferente, afinal, não somos uma máquina produtora de decisões.

Ainda assim, tudo fiz no sentido de não arrostar os direitos dos acusados. Nunca agi arbitrariamente. Nunca decidi sem fundamentar as minhas decisões; decisões,aliás, muito criticadas em face  da minha proverbial incapacidade de ser prolixo.

Hoje, distante das partes, conquanto compreenda  servir o processo  para emoldurar provas acerca de determinado fato,  não deixo de lembrar, com muito mais desvelo, que o  seu caráter instrumental é, sobretudo, o de garantir o  respeito aos direitos e garantias individuais assegurados na Constituição e nos tratados e convenções internacionais de que o Brasil seja parte.

Para mim, com a visão que tenho nos dias presentes, muita mais sedimentada, muita mais acurada, muita mais humanista,  o processo não pode ser visto  apenas como um instrumento para aplicar o direito penal.

A primeira análise  que faça, pois, em face de uma decisão condenatória de primeira instância, é no sentido de aferir  se todos os direitos constitucionais do acusado foram respeitados, para, só depois, analisar a decisão  de fundo submetida ao duplo grau de jurisdição.

A verdade processual é importante. Mas a sua importância, a partir de uma visão garantista, deve ser medida a partir do respeito às garantias constitucionais dos acusados.

É que a verdade que se busca não pode ser alcançada a qualquer preço. Ela só tem valor, ela só autoriza uma condenação, se forem respeitadas as franquias constitucionais dos acusados.

A verdade alcançada num processo eivado de desrespeito aos direitos da parte mais frágil da relação, de nada vale, pois os limites impostos à busca da verdade, desde a ótica de um juiz garantidor, é a dignidade da pessoa.

O magistrado, diante do binômio defesa social x direito de liberdade,   estará impedido de prosseguir na busca da verdade, se, nessa trilha, constatar qualquer afronta aos direitos e garantias fundamentais do cidadão.

Ingo Wolfgang Sarlet, citado por Aury Lopes Juinior, in Direito Processual Penal  e sua Conformidade Constitucional, ensina, a propósito,  que a dignidade da pessoa humana é um ” valor-guia não apenas dos direitos fundamentais, mas de toda ordem jurídica (constitucional e infraconstitucional), razão pela qual para muitos justifica pelnamente sua caracterização como princípio constitucional de maior hierarquia axiológica-valorativa”.

E conclui: ” o princípio da dignidade da pessoa humana acaba por justificar( até mesmo exigir) a imposição de restrições a outros bens constitucionalmente protegidos”.

Isso porque, adverte: “existe uma inegável primazia da dignidade da pessoa humana no âmbito da arquitetura constitucional”.

É assim que penso. É nessa senda que tenho decidido em segunda instância, pois, diferente do que se pensa e se propagou, durante muitos anos, não sigo o movimento da lei e ordem (law and order). Antes, o abomino, por entender que prega, como leciona Aury Lopes, a supremacia estatal e legal em franco detrimento do indivíduo e dos seus direitos fundamentais.

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