segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O juiz no banco dos réus

A magistrada que proferiu decisão que virou polêmica nacional – a partir de reportagem do programa Fantástico -, por ser considerada por alguns uma pena de “banimento”, escreveu ao site gaúcho Espaço Vital, sustentando as razões da medida e fazendo um desabafo: a emissora não lhe permitiu explicar a questão, “em razão dos cortes de entrevista.”

Gaúcha, juíza em Minas Gerais há quase sete anos e atuando na comarca de Buritis, Lisandre Figueira defende a sua decisão porque o réu estava preso e foi posto em liberdade, sob condições, em uma situação que lhe era mais benéfica.

Segundo a julgadora, foi deferido aquilo que a defesa do pleiteava (a liberdade); a segurança da vítima foi garantida; a Lei Maria da Penha não estabelece limite máximo de distanciamento do agressor da vítima; e o réu poderia ter recorrido da decisão, o que não fez. E mais: o réu não residia na cidade.

Agradecendo ao site gaúcho pela oportunidade de esclarecer “as peculiaridades do caso e os motivos que justificam a decisão”, a juíza Lisandre Figueira se expressa “na primeira voz, porque foi na qualidade de juíza de Buritis que fui defrontada pela mídia.”

Leia, a seguir, a manifestação da magistrada, publicada no site Espaço Vital, que tem como editor o advogado Dionísio Birnfeld.

“O Juiz no banco dos réus

Virei manchete do Fantástico. Que ironia.  Eu, gaúcha da fronteira, vim parar no Sertão de Minas Gerais, com tanta pobreza e carências de recursos, com todas as dificuldades que uma comarca de vara única me impõem, e acabo virando manchete em rede nacional.

Depois de cinco anos de advocacia no Rio Grande do Sul, optei pela magistratura mineira. Assim, há quase sete anos, aceito a vida meio sacerdotal do juiz, que nos exige trabalhar mais de 12 horas por dia, sabendo que ao voltar no dia seguinte,  novos processos virão.

Todos os dias revivo o mito de Sísifo. Subo a montanha de processos, todavia, resigno-me a ver a pedra rolar novamente. É um recomeçar sem fim.

Não assisti a reportagem do Fantástico, veiculada no último domingo, sobre o “homem que foi impedido de voltar para a sua cidade”, embora eu fosse uma de suas protagonistas.  Por que?  Porque conheço o caso e as razões do meu decidir. Nada do que seria dito alteraria a realidade fática e processual.

Dei a entrevista em razão de o tema ter tomado tamanha dimensão e por entender que toda a autoridade pública deve dar transparência aos seus atos. O fiz em respeito à comunidade de Buritis-MG, que conhece meu trabalho há cinco anos e sabe da lisura e imparcialidade dos meus julgamentos.

Por mais que tenha dado uma versão clara dos fatos ao nobre entrevistador,  já previa que a tônica da reportagem seria colocar “a juíza” na posição de vilã na história.

Nada que me impressione. Basta fazer uma consulta na Internet sobre reportagens a respeito de juízes e se verá que a imensa maioria tem a finalidade de questionar a validade e a legalidade de suas decisões. Não me recordo de alguma notícia de grande alcance nacional que tenha divulgado o bom trabalho desenvolvido por algum colega. É uma pena. Talvez não venda a matéria.

Dos relatos que me chegam, fico com a seguinte impressão: alguém tomou um livro nas mãos, leu o título e a orelha de capa e tirou suas conclusões. Podemos chamar isso de leitura? Conhecer-se-á a história em seus meandros? O por quê dos acontecimentos finais? Nunca. Jamais.

Princípio básico de processo: para julgar é preciso conhecer o processo. E digo-lhes: eu o conheço. Segundo: o juiz decide com base no que está no processo.

No caso, tinha em minha mesa um comunicado de prisão em flagrante por ameaça de morte à irmã e um pedido de liberdade provisória.

Embora mulher, não presumo que em todos os casos em que há a incidência da Lei Maria da Penha a vítima esteja sempre com razão. Desse modo, adoto por praxe forense a designação de audiência para ouvir o acautelado, com a finalidade de verificar a imprescindibilidade da manutenção da prisão. Na lição de Luigi Ferrajoli, a prisão sempre deve ser a ultima ratio.

Compulsando os autos, verifiquei que a fundamentação do pedido de liberdade provisória lastreava-se essencialmente no fato de que o réu era domiciliado no Distrito Federal e que sofria de problemas de saúde, motivo pelo qual necessitava retornar a sua residência. E, de fato, tais argumentos encontravam eco na documentação anexada aos autos. Portanto, conforme o que constava nos autos o réu não morava em Buritis.

Durante a audiência, com a concordância de sua advogada constituída e do Ministério Público, entendi que não havia motivos para manter o réu preso, porém, considerando que os confrontos familiares eram frequentes, especialmente quando este vinha a Buritis, lhe deferi o benefício de liberdade provisória, mediante condições, nos termos da Lei nº 11.340/06.

Optei pelo “caminho do meio”, devolvi-lhe a liberdade, o direito de ir e vir, porém mediante condições que garantissem segurança à vítima, nos termos da Lei Maria da Penha, art. 22, II e III, “c”. Dei-lhe a oportunidade de voltar ao seu domicílio efetivo em Brasília, de tratar dos seus problemas de saúde - conforme pleiteado nos autos -,   estabelecendo um prazo para que os ânimos tão acirrados se acalmassem. Quem sabe assim, o diálogo familiar se tornasse possível em outra oportunidade.

Pergunto-lhes: seria melhor tê-lo deixado preso? Seu direito de ir e vir já não estava restringido, ante o fato de que se encontrar encarcerado, autuado em flagrante por grave ameaça de morte à irmã? Alguém ousaria afirmar que prisão em flagrante não é constitucionalmente admitida, ante o disposto no art. 5º, LXI, da Constituição da República?  Quantas são as decisões judiciais que, com fundamento na Lei Maria de Penha, decretam a prisão preventiva dos supostos agressores, objetivando a proteção física e psicológica da vítima?

Neste momento cabe questionar: a circunstância de a decisão ser “inédita”, a torna ilegal ou inconstitucional? O juiz deve ser apenas e tão somente aquele sujeito que “copia e cola” a jurisprudência majoritária ou a melhor doutrina? Não. Definitivamente, não. A realidade dos fatos nos exige atuação pronta e célere na aplicação do Direito e, para isso, devemos fazer uma leitura do texto legal do modo mais adequado a cada caso.

Na hipótese em comento, o interesse de ambas as partes foi alcançado. Primeiro, porque aquilo que a douta Defesa pleiteava foi deferido, i.e., a liberdade do réu. Segundo: a segurança física e psicológica da vítima foi garantida. Terceiro: A Lei Maria da Penha, no seu art. 22, II e II, “c” não estabelece limites máximos de distanciamento do agressor da vítima. Quarto: Se houvesse qualquer descontentamento com a  polêmica decisão judicial, poderia o réu ter se valido dos recursos legalmente previstos ou da interposição de habeas corpus, o que não o fez.

Por tudo isso, deito a cabeça no travesseiro e durmo, com o sentimento de dever cumprido, pois talvez tenha evitado um mal maior. Evitei conflitos familiares que traziam tanta dor e sofrimento a ambas as partes. Lamentaria uma vida inteira se algo de pior acontecesse com qualquer dos envolvidos.
Já ouvi tanta coisa. “Rasgou a Constituição Federal!”. “É só mais uma menininha que passou num concurso!” “Não conhece a pirâmide kelseniana!”. “Crime de banimento!”  etc, etc.

Mas, confesso, recebo as críticas desses especialistas com carinho e respeito, sejam positivas ou negativas, afinal, vivemos numa democracia.

Que fique bem claro, não tenho pretensão de unanimidade. Em cada processo, 50% das partes serão desagradadas, sairão descontentes com a minha decisão. E o Direito é assim mesmo, dialético, relativo, tantas são as opiniões divergentes sobre o mesmo tema, amparadas por doutrina e jurisprudências tão variadas.

No dia em que eu for unanimidade, mudo de profissão.”

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