terça-feira, 20 de março de 2012

Lei da Anistia volta ao STF

No dia em que a Organização das Nações Unidas (ONU) pediu que o Judiciário brasileiro levasse adiante a denúncia do Ministério Público Federal (MPF) contra o coronel Sebastião Curió pelo crime de sequestro qualificado contra cinco militantes capturados na guerrilha do Araguaia na década de 1970, o juiz federal João César Otoni de Matos, de Marabá, no Pará, rejeitou a iniciativa. O MPF informou que vai recorrer da decisão ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

Como o grupo está desaparecido até hoje, o MPF argumentou que o crime não terminou e não poderia ser acobertado pela Lei da Anistia, que perdoou ilícitos cometidos por agentes do governo e opositores durante a ditadura militar. A tese não convenceu o magistrado paraense.

Para resolver de vez a questão, o Supremo Tribunal Federal (STF) julga na próxima quinta-feira se crimes continuados, como os desaparecimentos, estão incluídos entre os que foram perdoados pela Lei da Anistia. A Ordem dos Advogados do Brasil entrou com embargo para esclarecer o alcance da Lei da Anistia, depois do questionamento dos procuradores. Em 2010, o STF decidiu que a lei perdoou crimes políticos cometidos durante a ditadura militar, mas o MPF levantou nova argumentação que exige esclarecimento.

O juiz que rejeitou a denúncia do MPF contra Curió considerou ilegal a argumentação dos procuradores federais e ressaltou aspectos políticos. "Pretender, depois de mais de três décadas, esquivar-se da Lei da Anistia para reabrir a discussão sobre crimes praticados no período da ditadura militar é equívoco que, além de desprovido de suporte legal, desconsidera as circunstâncias históricas que, num grande esforço de reconciliação nacional, levaram à sua edição", anotou João César Matos em sua decisão.

A denúncia aponta como vítimas Maria Célia Corrêa, a Rosinha; Hélio Luiz Navarro Magalhães, o Edinho; Daniel Ribeiro Callado, o Doca; Antônio de Pádua Costa, o Piauí; e Telma Regina Cordeiro Corrêa, a Lia. Eles teriam sido sequestrados por tropas comandadas pelo então major Curió entre janeiro e setembro de 1974, levados a bases militares coordenadas por ele e submetidos a sessões de tortura. Depois disso, nunca mais foram vistos.

Para Matos, os procuradores não apontaram "documento ou elemento concreto que pudesse, mesmo a título indiciário, fornecer algum suporte à genérica alegação de que os desaparecidos a que se refere teriam sido, e permaneceriam até hoje, sequestrados".

Segundo o magistrado, para configurar crime de sequestro, não basta o fato de os desaparecidos não terem sido localizados. "Aliás, dada a estrutura do tipo do sequestro, é de se questionar: sustenta o parquet (o MPF) que os desaparecidos, trinta e tantos anos depois, permanecem em cativeiro, sob cárcere imposto pelo denunciado? A lógica desafia a argumentação exposta na denúncia", disse. O juiz também considerou que, mesmo que houvesse indício de crime, o militar não poderia ser punido, pois teria prescrito.

O advogado Adelino Tucunduva, que atua na defesa de Curió, comentou a decisão da Justiça do Pará em rejeitar a denúncia do Ministério Público Federal contra o militar:

"A decisão não é diferente do que esperávamos. Se por um lado existem procuradores afoitos, por outro há juízes com os pés no chão".

Antes da decisão da Justiça do Pará, a ONU divulgou nota em Genebra assinalando que o acolhimento da denúncia seria "um primeiro passo crucial na luta contra a impunidade que rodeia o período do regime militar no Brasil".

"Estamos esperançosos de que o Judiciário brasileiro vai defender os direitos fundamentais das vítimas à verdade e à justiça, permitindo que este processo muito importante vá para a frente", disse o comunicado, que remete a uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que determinou ao Brasil esclarecer os fatos e punir os responsáveis pelos crimes cometidos por agentes da ditadura no Araguaia .

A denúncia do MPF foi ajuizada na última quarta-feira. com a esperança de ser a primeira ação do país com o objetivo de punir um militar por crime cometido na ditadura. "As violentas condutas de sequestrar, agredir e executar opositores do regime governamental militar, apesar de praticadas sob o pretexto de consubstanciarem medidas para restabelecer a paz nacional, consistiram em atos nitidamente criminosos, atentatórios aos direitos humanos e à ordem jurídica", diz a denúncia.

A ação leva a assinatura dos procuradores da República Tiago Rabelo e André Casagrande Raupp, de Marabá; Ubiratan Cazetta e Felício Pontes Jr., de Belém; Ivan Marx, de Uruguaiana; Andrey Borges de Mendonça, de Ribeirão Preto; e Sérgio Suiama, de São Paulo. Em nota, os procuradores ressaltaram a importância da ação. "Não existe convicção de que as pessoas estão mortas, portanto, é fundamental que a Justiça analise os casos, permita a produção de provas, traga à luz a história dessas vítimas", diz a nota.

Em São Paulo, parentes de opositores ao regime militar e organizações de defesa dos direitos humanos lamentaram a decisão da Justiça .

"O Judiciário brasileiro está abrindo mão de mais uma oportunidade de consolidar o estado de direito no Brasil, é decepcionante", criticou Beatriz Affonso, diretora do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), entidade que levou o Brasil à Corte Interamericana de Direitos Humanos.

"Essa foi a primeira, mas não será a última vez em que juízes federais terão que se deparar com a questão. Com a decisão, retornamos a um lugar conservador e inadequado a uma democracia sólida", acrescentou Beatriz.

Irmã de três guerrilheiros que teriam sido torturados e mortos no Araguaia, Maria Laura Petit se disse indignada e frustrada pela recusa de recebimento da denúncia e acusa o Judiciário paraense de "cerceamento de direito".

"A sensação que fica é de que, politicamente, o Brasil teve avanços nos últimos anos, como eleições diretas etc. Mas, em outros níveis, sobrevivem enclaves autoritários que nos impedem de rever o nosso passado e viver uma democracia verdadeira. É isso que estamos encontrando hoje no Poder Judiciário", afirmou.

Irmão de Maria Célia Corrêa, estudante de Ciências Sociais que desapareceu no Araguaia, Aldo Corrêa já temia que a denúncia não fosse aceita:

"Era uma questão de coragem para a Justiça aceitar essa denúncia. Não importa se o Estado já havia considerado em lei que minha irmã está morta. Nós queremos saber o que aconteceu com ela, onde está o seu corpo". (O Globo)

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