“O habeas corpus é garantia fundamental que não pode ser
vulgarizada, sob pena de sua descaracterização como remédio heroico, e
seu emprego não pode servir a escamotear o instituto recursal previsto
no texto da Constituição”.
A afirmação é da ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, em
decisão que reitera a posição da Primeira Turma contra o uso do habeas
corpus para substituir qualquer recurso no processo penal, mesmo nos
casos em que não envolve prisão (*).
“Há verdadeira avalanche de habeas corpus a submeterem a mesma
questão, sucessiva e até concomitantemente, a diferentes tribunais”,
registrou a ministra em seu voto.
A manifestação de Rosa Weber reitera o posicionamento anterior da
Primeira Turma, que, no último dia 8/8, por iniciativa do ministro Marco
Aurélio no julgamento de dois habeas corpus, iniciou uma mudança em sua
jurisprudência para reconduzir esse instrumento ao seu leito próprio,
de meio de impugnação à prisão. (**)
A Primeira Turma decidiu não mais admitir o emprego do habeas corpus
em substituição a recurso ordinário contra denegação de HC por instância
anterior.
A mudança levou a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) a enviar ofício
ao ministro José Toffoli, presidente da Primeira Turma, a título de
“manifestar a preocupação da advocacia brasileira”.
“Tratando-se de pronunciamento jurisdicional soberano, à OAB cumpre
lamentar a interpretação limitadora conferida pela egrégia Turma ao
alcance do instituto tão valioso e caro às liberdades individuais e à
cidadania, que acaba por reduzir o princípio constitucional da presunção
de inocência, desprezando o procedimento de raízes históricas até então
adotado pela Corte”, afirma no ofício o presidente Ophir Cavalcante
Junior.
Em seu voto, a ministra Rosa Weber faz um levantamento das raízes
históricas do habeas corpus e conclui que tem havido, nos últimos anos,
“um desvirtuamento da garantia constitucional”.
Ao citar que em 2011 foram distribuídos no Superior Tribunal de
Justiça 36.125 habeas corpus –número quase equivalente ao total de
processos distribuídos no Supremo no mesmo ano (38.109)– Rosa Weber
afirmou que “tais números só foram possíveis em virtude da
prodigalização e da vulgarização do habeas corpus”.
O caso exemplar do uso de recursos para procrastinar a realização da
Justiça é o desvio de dinheiro público da construção do Fórum
Trabalhista de São Paulo, em 1992. Em dezembro de 2008, a Folha
revelou que os réus haviam oferecido, até então, 112 recursos. Sobre
esses expedientes da defesa, a ministra Eliana Calmon comentou, no mês
passado: “Essas chicanas são feitas por colarinhos brancos e não por
advogados de réus comuns, do José da Silva”.
A Segunda Turma do STF ainda não se posicionou sobre a mudança da jurisprudência pela Primeira Turma.
A seguir, trechos do voto de Rosa Weber:
(…)
O habeas corpus constitui garantia fundamental prevista na
Constituição da República para a tutela da liberdade de locomoção – ir,
vir e permanecer -, contra prisão ou ameaça de prisão ilegal ou abusiva.
(…)
A despeito da importância histórica do instituto, confundido com a
própria essência da liberdade, não foi e não é o habeas corpus
utilizado, no Direito anglo-saxão, senão diretamente contra uma prisão,
decretada em processo criminal ou não.
(…)
Já na primeira Constituição Republicana, de 1891, o habeas corpus
foi constitucionalizado. E o silêncio do art. 72, §22 quanto ao
objetivo de tutela apenas da liberdade de locomoção propiciou o
desenvolvimento da “Doutrina brasileira do habeas corpus”, que levou o
writ, na ausência de outras ações constitucionais, a ser utilizado para a
salvaguarda de outras liberdades que não a de locomoção, caso, v.g., do
Habeas Corpus 3.536, em que concedida ordem, em 05.6.1914, por este
Supremo Tribunal Federal, para garantir o direito do então Senador Ruy
Barbosa a publicar os seus discursos proferidos no Senado, pela
imprensa, onde, como e quando lhe convier.
(…)
O habeas foi contemplado em todas as Constituições republicanas,
de 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988, para a tutela da liberdade de
locomoção contra violência ou coação ilegal ou abusiva. Todo esse rico
histórico evidencia o caráter nobre da ação constitucional do habeas
corpus, garantia fundamental que, se não pode ser amesquinhada, também
não é passível de vulgarização.
(…)
É o habeas corpus uma garantia da liberdade de locomoção – ir,
vir e permanecer -, contra violência ou coação, pressupondo, portanto,
uma prisão, uma ameaça de prisão ou pelo menos alguma espécie de
constrangimento físico ou moral à liberdade física.
(…)
Embora restrito seu cabimento, segundo a Constituição, a casos de
prisão ou ameaça de prisão, passou-se a admiti-lo como substitutivo de
recursos no processo penal, por vezes até mesmo sem qualquer prisão
vigente ou sem ameaça senão remota de prisão. A pauta, aliás, desta
Primeira Turma, com mais de uma centena de habeas corpus sobre os mais
variados temas, poucos relacionados à impugnação da prisão ou efetiva
ameaça de, é ilustrativa do desvirtuamento do habeas corpus.
(…)
De nada adianta a lei prever um número limitado de recursos
contra decisões finais ou contra decisões interlocutórias se se entender
sempre manejável o habeas corpus. A par de notório que a possibilidade
de recorrer contra toda e qualquer decisão interlocutória é fatal para a
duração razoável do processo também assegurada constitucionalmente.
(…)
A preservação da racionalidade do sistema processual e recursal,
bem como a necessidade de atacar a sobrecarga dos Tribunais recursais e
superiores, desta forma reduzindo a morosidade processual e assegurando
uma melhor prestação jurisdicional e a razoável duração do processo,
aconselham seja retomada a função constitucional do habeas corpus, sem o
seu emprego como substitutivo de recurso no processo penal.
(…)
Admitir o habes corpus como substitutivo do recurso, diante de
expressa previsão constitucional, representa burla indireta ao instituto
próprio, cujo manejo está à disposição do sucumbente, observados os
requisitos pertinentes.
(*) 104045
(**) HC 109956
Nenhum comentário:
Postar um comentário