Os juízes paranaenses julgam muito mais baseados
em critérios pessoais extraídos do caso concreto do que na teoria. É o
que afirmam pesquisadores da Universidade Federal do Paraná em estudo
publicado pelo jornal paranaense Gazeta do Povo.
A
conclusão é polêmica. Adstritos à lei e à jurisprudência, os
magistrados deveriam, em tese, aplicar às questões que chegam aos
gabinetes normas e entendimentos pacificados. No entanto, é comum o uso
de princípios gerais do Direito para ajudar quando há regras
conflitantes. Além disso, qualquer norma pode ser interpretada, o que
abre um leque de entendimentos possíveis.
É o que afirma o juiz Fernando Ganem,
presidente da Associação dos Magistrados do Paraná. “As lacunas
deixadas pela lei exigem a aplicação de princípios”, explica. Segundo
ele, a jurisprudência é saída para os chamados casos “de massa”, em que
as teses são repetidas e há uma coleção de decisões a respeito. “Já em
questões polêmicas, a ideologia e o posicionamento social prévio
influenciam na decisão, justificada, depois, com a doutrina e a
jurisprudência.”
Para o juiz, o comportamento não gera insegurança
jurídica. “Há divergência na própria jurisprudência. Há câmaras de um
mesmo tribunal que decidem de forma diferente os mesmos temas. Divergir é
natural do ser humano”, opina.
O criminalista Edward Rocha de Carvalho,
do escritório Miranda Coutinho & Advogados, discorda. Para ele, a
prática no Direito Criminal pode levar a injustiças, “principalmente
quando se leva em consideração o sistema inquisitorial brasileiro, que
confere poderes ao juiz que ele não deveria ter, justamente para ser a
ele possível fugir das armadilhas das conclusões precipitadas e da
tomada da iniciativa como se fosse parte”, diz. Para ele, a pesquisa
comprova o que o senso comum já previa: “Chega-se antes a uma conclusão
sobre o caso e depois se buscam os meios de a sustentar. Juízes, como
são humanos, também agem assim, apesar de a Constituição e a lei não
lhes darem muita margem para manobras hermenêuticas.”
De acordo com o advogado do escritório Tostes e Associados Miguel Ângelo Barros, desembargador
aposentado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a frequência com
que convicções pessoais dos magistrados influem nas decisões a ponto de
extrapolar os limites da legislação já foi maior nos Juizados Especiais,
principalmente quando seus juízes perceberam que recursos contra suas
decisões dificilmente seriam julgados pelo Superior Tribunal de Justiça
ou pelo Supremo Tribunal Federal. "Os juízes praticamente criaram uma
jurisprudência própria, totalmente diferente da pacificada na Justiça
comum", explica.
"Isso diminuiu muito depois da decisão do STF
que autoriza o STJ a usar a Reclamação para fazer valer o poder
unificador de sua jurisprudência, mas voltou a crescer ultimamente,
depois que o STJ 'limitou' o cabimento das Reclamatórias aos temas de
mérito que sejam objeto de súmula ou Recurso Repetitivo", analisa
Barros. Segundo ele, no primeiro grau, é pequeno o número de sentenças
baseadas na interpretação das teorias jurídicas e grande o número de
sentenças com fundamentos nas circunstâncias do caso concreto. Já no
segundo grau ocorre o inverso.
Para o advogado Arnoldo Wald,
um fator tem estado cada vez mais presente nas decisões, fruto de uma
maior preocupação com a eficiência: “Há uma ponderação entre o exame das
consequências do julgamento e a melhor distribuição da Justiça”,
afirma. “É o direito do possível, ou seja, o melhor direito que se pode
assegurar às partes em determinadas condições. É o que chamamos o
pragmatismo ético.”
Crítico da liberdade reclamada pelos juízes
para decidir, o procurador de Justiça do Rio Grande do Sul, professor da
Unisinos e presidente de honra do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Lênio Streck, comentou, por e-mail, a reportagem:
"Os
dados não surpreendem. Apenas confirmam a crise de paradigma que venho
denunciando há anos. Nossa formação jurídica, nosso ensino, nossas
práticas, encontram-se arraigadas a um paradigma filosófico
ultrapassado. Sei que é dificil dizer isso, mas falta filosofia. Falta
compreensão. Nosso imaginário juridico está mergulhado na filosofia da
consciência. Nele, cada juiz é o "proprietário dos sentidos". É um
equívoco dizer que sentença vem de sentire. Essa é uma das grandes falácias construídas no Direito. É o que eu chamo de "solipsismo", que é a tradução de selbstsüchtiger, o sujeito egoísta da modernidade.
"Meu livro O que é isto - decido conforme minha consciência? denuncia
esse fenômeno. Na democracia, as decisões não podem ser fruto da
vontade individual ou da ideologia ou, como queiram, da subjetividade do
julgador. A primeira coisa que se deveria dizer a um juiz, quando ele
entra na carreira é: não julgue conforme o que voce acha ou pensa.
Julgue conforme o direito. Julgue a partir de princípios e não de
políticas. Aceitar que as decisões são fruto de uma 'consciência
individual' é retroceder mais de 100 anos. E é antidemocrático. Meu
direito depende de uma estrutura, de uma intersubjetividade, de padrões
interpretativos e não da 'vontade'.
Quem disse que a interpretação
era um ato de vontade foi Kelsen. E todos sabem que ali, em Kelsen,
estava o ovo da serpente do decisionismo e do subjetivismo. Juiz não
escolhe, quem escolhe é o cidadão, na sua razão prática cotidiana. Juiz
tem responsabilidade política. Ele decide. A consciência do juiz não é
um ponto cego ou isolado da cultura. Quando o desembargador diz que não
dá para esperar que o juiz se separe de seus conceitos politicos e
religiosos etc, tem um problema: ninguém nessa altura da campeonato acha
que o juiz é uma alface ou que esteja amarrado aos textos como no
iluminismo. Desde há muito que a hermenêutica, principalmente a
filosófica, superou isso, na medida em que a carga de pré-conceitos não é
um mal em si, mas é uma aliada. Interpretar não é atribuir sentidos de
forma arbitrária, mas é fazê-lo a partir do confronto com a tradição,
que depende da suspensão dos pré-conceitos. Se o juiz não consegue fazer
isso, não pode e não deve ser juiz. São os dois corpos do rei, como
diria Kantorovicz. Dworkin diz muito bem que não importa o que o juiz
pensa; não importa a sua subjetividade. Suas decisões devem obedecer a
integridade e a coerência do Direito.
Mas isso tudo quer dizer:
precisamos sofisticar a discussão no Brasil acerca de como se aplica o
Direito. Urgentemente. O Direito não pode ser simplificado,
estandartizado. O problema é que estamos colonizados por uma baixa
literatura, que confunde conceitos e teorias. Basta ver os concursos
públicos, que mais estão preocupados em fazer pegadinhas do que
perquirir questões reflexivas. Hoje, já não se estuda para concurso;
treina-se.
Outra coisa: quando se diz que o juiz primeiro decide
e, depois, fundamenta, cai-se em uma armadilha filosófica. É o famoso
"livre convencimento motivado". Como posso admitir que, na democracia,
alguém tenha "livre convencimento"? E como é possível que alguém
acredite que a "motivação" resolva o problema? A questão é de raiz. De
fundamento. Por isso tudo, não me surpreende a pesquisa. Se a
estendermos aos tribunais superiores, com certeza os resultados serão
similares."
LEIA A REPORTAGEM:
COMO JULGAM OS MAGISTRADOS
Estudo
da UFPR indica que juízes paranaenses buscam a solução para o caso
concreto, dentro daquilo que eles entendem como Justiça, para depois
encontrar o Direito
por Sandro Moser
Sentenças
baseadas na interpretação das teorias jurídicas ou com fundamentos nas
circunstâncias do caso concreto? Convicções pessoais dos magistrados
influem nas decisões a ponto de extrapolar os limites da legislação?
Afinal, como os nossos juízes têm decidido? No debate entre
pesquisadores, advogados e magistrados, há pontos de vista bem
diferentes e conclusões conflitantes.
No meio acadêmico, há quem
perceba tendência de uma inversão da lógica do Direito nas sentenças
proferidas pelos juízes atualmente, em que o critério pragmático de
seletividade decisional tem prevalecido. Estudo elaborado por
pesquisadores da Universidade Federal do Paraná (UFPR) indica que os
juízes paranaenses julgam muito mais baseados em critérios de
conveniência extraídos do caso concreto, em vez de utilizar a teoria ou
um critério geral.
Depoimento
“Sempre estará presente carga cultural e formação”
"Não se pode generalizar o raciocínio de que os juízes, em seus
julgamentos, convencem-se primeiramente pelos aspectos materiais e
pessoais das partes, para, em seguida, buscar teorias jurídicas e
legislação que possam fundamentar sua conclusão, como se a sentença
fosse sempre uma retórica calcada em ideologias. Isso pode acontecer
como mecanismo natural relacionado, muitas vezes, à formação do
magistrado, mas não como modelo absoluto de julgamento, que resulta de
orientações diversas, dentre elas a jurisprudencial, esta cada vez mais
em voga.
Num primeiro olhar, esse mecanismo estaria normalmente
obedecendo ao aforismo da mihi factum, dabo tibi jus, significando que o
magistrado aplica o Direito ao fato, ainda que aquele (o Direito) não
tenha sido invocado na petição. E, se invocado, o juiz pode conferir aos
fatos qualificação jurídica diversa da atribuída pelo autor da demanda.
O direito brasileiro prestigia esse aforismo, conjuntamente com o jura
novit curia (o juiz conhece o direito).
O tema traz à tona, uma
vez mais, a neutralidade e a imparcialidade do juiz. A imparcialidade é,
sim, princípio de rigor observância nos julgamentos (o juiz não pode
ser suspeito ou impedido para determinado julgamento).
Todavia,
tem-se considerado um mito o juiz neutro, na visão de que, como produto
cultural de seu meio, suas decisões receberão a influência de sua
formação jurídica, de suas crenças religiosas, de sua personalidade e de
sua condição econômica. Há estudos sobre o perfil da magistratura
(origem econômica e social do magistrado) e suas consequências na
interpretação das leis ou, a melhor dizer, na aplicação do direito ao
caso concreto.
Por tudo isso, encontramos decisões diferentes para
situações semelhantes, uma vez que, na interpretação dos fatos e da
lei, sempre estará presente a carga cultural e a formação do
magistrado."
José Maurício Pinto de Almeida, desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná
“Em
vez de alguns julgadores buscarem o Direito para encontrar a solução,
eles buscam a solução – dentro daquilo que entendem como Justiça – para
depois buscarem o Direito”, constata o professor de Direito
Constitucional da UFPR, Emerson Gabardo, um dos pesquisadores envolvidos
no estudo.
Para Gabardo, entre os magistrados há uma busca da
sentença que faça Justiça no caso concreto, em detrimento de decisões
que procurem justificar teorias doutrinárias. A mesma constatação é
feita na prática diária por advogados que percebem que alguns
entendimentos de tribunais variam de caso para caso, de julgador para
julgador, e, em alguns casos, de dia para dia. “Um mesmo relator em
casos análogos foi capaz de aplicar duas teorias diferentes para a
resolução do mesmo problema, sem nem ao mesmo mencionar que houve
mudança de entendimento”, disse um advogado, que pediu para não ser
identificado.
Decisões que levam muito mais em conta as
circunstâncias do caso concreto no convencimento dos magistrados são,
explica Gabardo, em parte, influenciadas pela “mudança de paradigma” das
teorias do chamado neo-constitucionalismo ou pós-positivismo, que abrem
as possibilidades hermenêuticas do magistrado fazendo com que os
princípios constitucionais também funcionem como regras. “Antes haviam
padrões mais bem estabelecidos e a vinculação formal à lei era um
mecanismo de segurança jurídica importante.”
Para ele, atualmente
os juízes estão muito mais preocupados, conscientemente ou não, a fazer a
justiça conforme seus próprios critérios subjetivos. “É paradoxal, mas a
abertura para os princípios acaba acarretando uma ampliação da
influência da consciência na decisão. Formalmente a decisão é objetiva,
materialmente não. Isso já acontecia no auge do positivismo, mas de
forma muito mais tímida e controlável”, compara.
Insegurança
Esta amplitude aumentada das possibilidades da sentença, no
entanto, é motivo de preocupação para uma ala mais conservadora da
advocacia. “Temos hoje quase 16 mil juízes, cada um com formação ou
convicção pessoal diversa. Ao se permitir várias interpretações cria-se
uma insegurança muito grande”, avalia o advogado Ives Gandra Martins
Júnior.
O advogado e pesquisador da Escola Superior da
Magistratura do Rio Grande do Sul João Gabriel Figueiró Salzano defende
que para a decisão judicial não se configurar em arbitrariedade é
necessário que nas sentenças constem os fundamentos que levaram o juiz a
escolher aquela opção (dentre as opções contidas na lei), bem como os
fundamentos que levaram o juiz a rejeitar outro tipo de alternativa.
“A
fundamentação se configura como meio de controle da atuação do juiz em
seu poder discricionário”, explica. Ele vê como “anacrônica” a ideia de
que se esperava do juiz um distanciamento do conflito submetido à sua
apreciação, “como se o resultado final do processo pudesse prescindir da
atuação mais efetiva e direta desse sujeito da relação jurídica
processual.”
Volume de processos prejudica análise
A avalanche de processos em todas as esferas do Judiciário é
outro fator que pode influenciar na qualidade das sentenças produzidas
no Brasil. De acordo com o Anuário da Justiça 2012, o Poder Judiciário
conta em todo país hoje, em todos os graus de jurisdição, com cerca de
80 milhões de feitos em tramitação. A demanda faz com que os magistrados
atuem pressionados na tentativa de atingir as metas de eficiência
estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Nestes casos, a
falta de tempo pode prejudicar a análise de todos os aspectos legais e
materias dos julgados.
Para o vice-presidente do Tribuna Regional
Federal da 1ª Região, José Amilcar de Queiroz Machado, o grande volume
de trabalho obriga os juízes a, além de se preocuparem com os aspectos
formais e matérias das decisões, desenvolverem habilidade de
administrador. “O juiz não precisa ser gestor, mas tem de estar
consciente da necessidade de uma gestão eficiente do Poder Judiciário.”
Machado
sustenta que as metas de produtividade fixadas pelo CNJ são
necessárias, mesmo que muito ambiciosas. “O Judiciário chegou a este
ponto de estrangulamento porque faltou gestão”, aponta.
Nos
tribunais superiores, o número de processo tem caído em um movimento
impulsionado pelo uso mais frequente de filtros. Para o advogado Arnoldo
Wald, o uso “responsável” destes filtros recursais tem repercutido na
celeridade das decisões de forma positiva. Segundo Wald, há também um
avanço qualitativo nas decisões. “Os tribunais passaram a enfatizar a
eficiência e as consequências econômicas e sociais de suas decisões”,
avalia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário