Quem presenciou a veemência com que o ministro Gilmar Mendes
 defendeu a competência originária do Conselho Nacional de Justiça na 
sessão da última quinta-feira (2/2), no Supremo Tribunal Federal, pode 
ter ficado com a impressão de que ele considera o poder de investigação 
do órgão a mais importante de suas atribuições. Não é por menos. Entre 
outras coisas, Mendes afirmou que “até as pedras sabem que as 
corregedorias não funcionam quando se cuida de julgar os próprios 
pares”. 
Mas, para o ministro, o poder de 
investigação não é o papel mais relevante do Conselho. “O CNJ tem um 
papel multiforme, variado. Eu diria que a tarefa de planejamento é mais 
importante, a tarefa de interpretação, de produção, de seleção de dados e
 de comunicação de dados, para o planejamento, o diagnóstico para as 
ações”, afirmou. Trocando em miúdos, Gilmar Mendes defendeu, na verdade,
 a integridade e o poder normativo do órgão que têm a responsabilidade 
de tocar o planejamento estratégico da Justiça. Nesta seara, o poder de 
correição sobre os juízes é apenas uma das facetas do CNJ. 
A solução para a lentidão que marca os 
processos judiciais brasileiros e a sonhada conclusão mais rápida das 
ações penais não serão alcançadas sem um trabalho sistêmico que parta 
não apenas do Poder Judiciário. É necessário o trabalho conjunto de 
todos os órgãos que direta ou indiretamente estejam envolvidos com o 
sistema de distribuição de justiça no Brasil. 
Para o ministro Gilmar Mendes, pouco 
adianta discutir formas antecipar etapas ou restringir recursos para os 
tribunais superiores e para o Supremo Tribunal Federal se nada for feito
 para que os órgãos estatais por onde passam os problemas antes de 
desaguar em forma de processos no Judiciário funcionem razoavelmente 
bem.
“O Conselho Nacional de Justiça 
descobriu, em Alagoas, quatro mil homicídios sem sequer o inquérito 
aberto. Diante desse quadro, de problemas dessa gravidade, eu vou 
discutir recursos criminais no Superior Tribunal de Justiça e no 
Supremo?”, questiona o ministro. É a partir desse ponto de vista que 
Mendes classifica a PEC dos Recursos, idealizada pelo presidente do 
Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluso, como “uma boa metáfora”. 
O ministro concedeu uma entrevista à revista Consultor Juródico para publicação no Anuário da Justiça Brasil 2012,
 que será lançado em março. Na conversa, defendeu que a Justiça criminal
 seja analisada como questão de segurança pública. De acordo com Gilmar 
Mendes, é necessário traçar uma estratégia de segurança pública global, 
cujo foco parta dos problemas encontrados desde o inquérito até a 
ressocialização dos egressos do sistema penal. “A Justiça é um cenário 
importante, mas é apenas um dos cenários. É preciso integrar os sistemas
 e ter uma visão menos compartimentada do fenômeno”, afirmou. 
Leia os principais trechos da entrevista
ConJur — Qual é o papel do CNJ?
 
Mendes — O CNJ tem um papel multiforme, variado. Sua 
principal função não é a investigação. Eu diria que a tarefa de 
planejamento é mais importante, a tarefa de interpretação, de produção, 
de seleção de dados e de comunicação de dados, para o planejamento, o 
diagnóstico para as ações. É mais importante saber se temos uma 
distribuição adequada de juízes a partir dos resultados obtidos. A 
tarefa normativa de regular, de disciplinar, pode ser mais importante 
porque, com isso, se evita uma série de desvios. Se existe uma boa 
disciplina em matéria de distribuição de processos, um sistema 
eletrônico de distribuição de processos, se evita a falta na 
distribuição. E com isso se elimina uma série de problemas conhecidos, 
de desvios, de liminares, que às vezes nem envolve o juiz, mas toda uma 
estrutura viciada. É preciso disciplina para que o juiz realmente esteja
 na comarca. Regras básicas que já estão previstas. Por outro lado, 
sabemos que as corregedorias têm muita dificuldade para fazer 
investigações nos tribunais. Então, impõe-se a ação do CNJ de forma 
direta. Agora, imaginar que o CNJ vai sair a investigar cada juiz sobre o
 qual houver uma denúncia é ilusão.
ConJur — O senhor 
presidiu o CNJ por dois anos. Nesse período, viajou muito pelo país e 
teve contato a realidade do Judiciário nos mais diferentes lugares. A 
Justiça tem jeito?
Mendes — Sim. É muito comum a mídia dizer que o Judiciário é o menos transparente dos poderes. Não é verdade. Na minha gestão, divulgamos todos os dados da Justiça e reclamamos que os tribunais divulgassem. Isso continua de alguma forma. A diferença do Judiciário em relação aos demais poderes é que, em geral, os casos de desvios que se tem verificado em outros poderes são revelados a partir de investigações heterônomas, de fora do sistema. É a mídia que descobre um desvio de um deputado, de um senador, de um integrante do Executivo. No Judiciário, não. São através das atividades normais de correição que se descobrem os desvios. O CNJ revelou muito. Esse é um dado importante que precisa ser destacado. Temos hoje setores do Judiciário funcionando bem. Temos também que reconhecer que a sociedade está estruturada de forma a depender muito do Judiciário quando falamos de 80 milhões de processos. E talvez haja uma demanda recôndita de mais alguns milhões de processos. Todos os setores novos que estão se incorporando à economia de forma vital certamente vão trazer novas demandas se não nos organizarmos de outra maneira. Pense que criamos os juizados especiais federais esperando ter 200 mil processos e temos lá 2,5 milhões. Isso em 10 anos.
ConJur — Doze vezes mais do que se imaginou.
Mendes — Veja como se planeja esse contexto. Mas, ao mesmo tempo, isso revela alguma coisa: ou o cidadão vai para o Juizado Especial ou fica à deriva. Precisamos pensar na relação da Justiça com a sociedade. À medida que o aparato judicial fica mais eficiente, ele atrai mais demanda. É o caso dos juizados especiais federais. Uma expectativa de 200 mil processos se transforma em 2,5 milhões. Talvez a maior repartição hoje da Previdência e assistência social seja o Juizado Especial Federal. Temos mais processos hoje nos juizados especiais federais do que na Justiça Federal como um todo. O que isso significa? Significa que nós temos que encontrar novas formas institucionais para responder a isso e melhorar o serviço público em geral.
ConJur — Evitar que as demandas sejam ajuizadas?
 
Mendes — Sim. Imaginemos outro campo, como o do Direito
 do Consumidor. Hoje temos o Procon que funciona razoavelmente bem, com 
variações de estado para estado. Mas ele não tem força vinculante. 
Então, se alguém faz um acordo no Procon e esse acordo não é cumprido, a
 causa é judicializada. Precisamos discutir novas formas de organização.
 Dos 80 milhões de processos que falamos, temos 30 milhões de execuções 
fiscais, que são as cobranças dos créditos da Fazenda Pública. Muitas 
vezes ajuizadas na última hora para não ter problema de prescrição. 
Créditos muitas vezes inviáveis. Será que nós não conseguimos pensar 
outras formas de resolver essas questões?
ConJur — A execução fiscal administrativa seria uma saída legítima?
 
Mendes — Alguma coisa do tipo. Ou mesmo mecanismos 
outros de constrição. Um processo de execução certamente deve custar R$ 
1,5 mil, no mínimo. Diante disso, como cobrar um IPTU de R$ 100? Isso 
também não é educativo na medida em que as pessoas verificam que vale a 
pena não pagar porque também não será executado. Ou porque a execução 
vai ser frustrada. Então, é necessário repensar todas essas questões que
 envolvem a cultura judicialista.
ConJur — Há um projeto 
de lei no Congresso que prevê a execução fiscal administrativa, 
inclusive dando poderes para a Fazenda fazer a constrição de bens sem a 
mediação do Judiciário. O que o senhor acha desse projeto?
 
Mendes — Há uma discussão em torno disso. Tenho a 
impressão que há possibilidade de se fazer um modelo institucional que 
permita o controle judicial no momento adequado e que evite essa 
judicialização em massa de ações inviáveis. Eu sei que há muito 
desconfiança com relação àquilo que a administração faz. E não 
exatamente por mera suspeita, mas porque há abusos também.
ConJur — Não é uma desconfiança imotivada...
 
Mendes — Não. Vimos o caso, por exemplo, da quebra de 
sigilo bancário feita pela Receita Federal e os episódios não muito 
distantes de manipulação da Receita para esse fim. É preciso que haja o 
devido tempero. Mas certamente é possível pensar-se em formas que 
aliviem o Judiciário dessa sobrecarga que o onera. Porque, a rigor, a 
execução fiscal virou símbolo de não efetividade. Se nós fomos olhar o 
índice de efetivação, da transformação do crédito pretendido em algo 
efetivo, verificaremos que é muito baixo.
ConJur — No ano 
passado, o senhor alertou para uma crise numérica que se avizinhava, que
 era a do volume de Habeas Corpus. A crise chegou. Os ministros do STJ 
recebem, por dia útil, cerca de 30 pedidos de HC com liminares. O senhor
 acha que há abuso no manejo de Habeas Corpus hoje?
 
Mendes — Mentalmente sempre é possível pensar em novas 
formas. Agora, o que nós temos, em uma avaliação simples, é um índice de
 concessão de Habeas Corpus que chega a 30%, por exemplo, na 2ª Turma do
 Supremo. É um índice alto depois de o problema ter passado por todas as
 instâncias. E um olhar atento verificará que estamos discutindo a 
prisão provisória, a denúncia recebida em primeiro grau, detalhes do 
processo criminal na sua origem. Algumas vezes, questões ligadas à 
demora na prisão provisória e coisas do tipo. Então, diante desse 
quadro, como justificar a restrição ao Habeas Corpus? Já se pensaram 
várias formas. Por exemplo, que a lesão terá que ter sido perpetrada no 
tribunal imediatamente inferior ao Supremo. Mas como separar uma coisa 
da outra do ponto de vista de efetividade?
ConJur — Uma prisão injusta decretada pelo juiz de primeiro grau tem o mesmo efeito da prisão injusta do STJ...
 
Mendes — Exatamente. E não vamos esquecer que já 
corrigimos muitos constrangimentos aqui no Supremo por meio de Habeas 
Corpus. Denúncias por erro de preenchimento de guia, casos de crimes 
famélicos, outros que se encaixam no princípio da insignificância. De 
novo, talvez tenhamos soluções estruturais, como uniformizarmos os 
nossos entendimentos, do Supremo e do STJ. Talvez devêssemos ter um 
diálogo, quebrar esses muros, essa separação entre as instâncias. Ou 
seja, temos de pensar a Justiça criminal como um todo.
ConJur
 — O número de pedidos de Habeas Corpus que chega ao Supremo diariamente
 chega a ser um problema como no STJ? Chega a congestionar?
 
Mendes — Não. Eu posso responder pelo meu gabinete. E 
nós estamos praticamente em dia com o julgamento de Habeas Corpus. Mas 
volto ao ponto. É necessário que essa discussão seja feita em um 
contexto mais amplo. Temos de tentar uniformizar os critérios. Eu 
imagino que os juízes estejam perplexos com as nossas próprias decisões a
 propósito do princípio da insignificância.
ConJur — Por quê?
 
Mendes — Porque a toda hora tem um detalhe diferente. 
Uma coisa é um sujeito quebrar o vidro de um carro para tirar um CD. Aí 
nós decidimos que, apesar do valor ínfimo, houve a ruptura de um 
ambiente, uso de violência, e consideramos então que não há de se 
reconhecer o princípio da insignificância. Agora, outra coisa é romper, 
há poucos dias tivemos isso, um lacre de uma roupa de uma loja de 
roupas. Então nós decidimos que isso não é ruptura. E geramos uma 
perplexidade. Talvez devêssemos, fora da emissão de juízos nos casos 
concretos, tentar uniformizar esses conceitos de forma mais objetiva por
 meio de um diálogo no âmbito do próprio Judiciário.
ConJur
 — A Súmula Vinculante e a Repercussão Geral fizeram cair o  número de 
recursos que chegam ao Supremo. Mas o volume ainda é grande. É  
necessário criar novos filtros?
 
Gilmar Mendes — Antes nós temos, no mínimo, que exaurir
 toda a  potencialidade desses institutos. E certamente não estamos 
aplicando-os  em toda extensão. Por exemplo, nós reconhecemos a 
repercussão geral de  muitas questões, suspendendo os processos que 
tramitam em todas as  instâncias, mas não damos a devida vazão aos leading cases.
 Isso  tem implicações, porque acabamos por retardar a definição de 
importantes  questões. O Supremo precisa trabalhar com esse foco, de 
julgar mais  rapidamente os casos de repercussão geral. Sabemos que isso
 é difícil  porque a pauta é tumultuada e há os inevitáveis pedidos de 
vista.  Precisamos melhorar inclusive na questão dos pedidos de vista, 
talvez  limitar o prazo. E isso vale para todos nós.
ConJur — Como? Por meio de uma norma regimental fixando prazo máximo para pedidos de vista?
 
Mendes — É. Alguma coisa que se aplique efetivamente, porque já foram feitas várias tentativas.
ConJur — Faz tempo que o Supremo não aprova súmulas vinculantes. Por quê?
 
Mendes — Precisamos também voltar a focar nas súmulas e
 dar-lhes a  atenção devida. A edição de súmulas vinculantes é um fator 
de inibição  de subida de processo, de segurança jurídica e de 
orientação para os  tribunais.
ConJur — Não faz muito 
tempo que o Supremo declarou  inconstitucionais benefícios fiscais 
concedidos pelos estados, que  provocam a chamada guerra fiscal. Ainda 
assim, há estados concedendo  benefícios fiscais em relação a ICMS, por 
exemplo. Esse é um caso de  súmula vinculante?
 
Mendes — Talvez, em algum momento. Mas esse é um caso 
que reclama  certa ponderação porque nos coloca diante de uma questão 
política muito  delicada, que é a falta de políticas regionais e de 
gestão. Então,  eventualmente, precisamos levar isso em conta. O governo
 federal,  obviamente, não se anima a entrar nesse debate porque terá 
eventualmente  que pagar a conta. Isso envolve discussões sobre dívidas,
 políticas  regionais e, necessariamente, novos recursos. Por isso é um 
tema tão  solto que se transforma na selva que está aí. Do ponto de 
vista apenas  formal, não é difícil o tribunal editar uma súmula 
vinculante.
ConJur — Mas é preciso considerar a realidade... 
 
Mendes — E há movimentos do Congresso Nacional, por exemplo, para rever a lei que prevê que o Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária)
  tenha de aprovar os benefícios por unanimidade. No momento, o ambiente
 é  muito conturbado. Vivemos um momento de repactuação federativa. É  
notório isso. Há uma série de questões que estão sendo reabertas e o  
tribunal tem de observar, também, a complexidade delas. Sempre nos  
deparamos com pedidos de liminares dos estados reclamando, por exemplo, 
 de inscrições no Cadin (cadastro dos devedores da Administração Pública Federal).
  Há um mosaico com várias colorações na área federativa. Há a guerra  
fiscal, a questão da dívida pública, os royalties do pré-sal, o Fundo de
  Participação dos Estados. São exemplos de quatro grandes temas que  
precisam de uma costuma institucional. É um momento tormentoso, que pode
  ser venturoso em razão da oportunidade de discutir isso 
associadamente.
ConJur — A PEC dos Recursos é uma boa saída para dar efetividade para as decisões judiciais?
 
Mendes — Acredito que não. Embora a PEC seja 
abrangente, toda sua  justificativa é a impunidade na área criminal. Mas
 aí há uma série de  problemas que começam no inquérito. Por exemplo, o 
Conselho Nacional de  Justiça descobriu, em Alagoas, quatro mil 
homicídios sem sequer o  inquérito aberto. Eram quatro mil homicídios, 
sem dúvidas. E nem  inquérito tinham. Diante desse quadro, de problemas 
dessa gravidade, eu  vou discutir recursos criminais no Superior 
Tribunal de Justiça e no  Supremo? Há crimes de competência de tribunal 
do júri com ameaça de  prescrição no Brasil todo. Pernambuco, por 
exemplo, tem mil casos de  júri para prescrever em torno de Jaboatão do 
Guararapes (cidade da região metropolitana de Recife).
ConJur — Mas esses crimes não prescrevem em 20 anos?
 
Mendes — Exato. São homicídios e tentativas de 
homicídio, que são  de competência de júri, que prescrevem em 20 anos. E
 aí eu vou discutir  recurso nos tribunais? É esse o problema da Justiça
 criminal? Quer  dizer, vamos olhar para a estrutura e melhorar. Aqui no
 Supremo, por  exemplo, com a criação dos cargos de juiz instrutor, com 
foco, dando  certa prioridade aos processos criminais, começamos a 
julgar. Mas há um  trabalho de estrutura por trás disso. Criamos uma 
secretaria para tratar  do tema, passamos a verificar os casos no 
tribunal, criamos a figura do  juiz instrutor e evitamos a delegação. Os
 processos criminais passaram a  ter resultados, a despeito dos 
problemas de tempo. O STJ pode fazer a  mesma coisa. O Judiciário tem de
 melhorar muito em termos de estrutura.  Diante disso, a PEC dos 
Recursos é uma boa metáfora. A idéia é uma boa  metáfora.
ConJur
 — Em defesa da PEC dos Recursos, o presidente do STF deu o  exemplo do 
caso do jornalista Pimenta Neves que, condenado, recorreu  tanto que só 
foi preso quase 11 anos depois do assassinato da Sandra  Gomide. Esse 
não é um exemplo que justifica a proposta?
 
Mendes — Observe que o Pimenta Neves levou seis anos 
para ser  julgado pelo Tribunal do Júri em São Paulo. Então, a maior 
demora não  ocorreu nas demais instâncias, mas sim na originária. 
Voltamos ao  problema da estrutura, não dos recursos, já que demorou 
seis anos para  que ele fosse condenado em primeiro grau. Percebe-se 
muita mística em  torno desse assunto. E é um remédio que causa muito 
mais males do que  benefícios, a meu ver. E criará problemas sérios. O 
Recurso  Extraordinário passaria a ter efeito rescisório. Mas quando nós
  revertêssemos, por exemplo, uma condenação em desapropriação, o 
dinheiro  já não teria sido gasto? As funções do Supremo e do STJ 
passariam a ser  comprometidas no Recurso Extraordinário e no Recurso 
Especial. Podemos  usar os remédios normais. Precisamos fazer a Justiça 
usar, e dispomos  hoje de mecanismos para fazê-lo, metas, julgamentos, 
foco na área penal,  associar isso com segurança pública. Quer dizer, o 
país precisa se  estruturar em torno disso. 
ConJur — O CNJ vinha dando grandes avanços nesse sentido, não?
 
Mendes — Sim. E é necessário se estruturar para fora do
  Judiciário. A questão da Justiça criminal é uma questão de segurança  
pública. Alguém que pertence a uma organização criminosa é preso e,  
depois de três anos, é solto. Por quê? Porque a Justiça não consegue  
julgar. Isso é um problema de segurança pública. Tudo isso precisaria  
ser visto dentro de uma estratégia. Por isso que nós lançamos há tempos a
  idéia de uma estratégia de segurança pública, com focos para terminar 
 os inquéritos, terminar os processos, começar a tomar determinadas  
medidas no processo criminal. Isso precisaria ter segmento. Mas não como
  tarefa apenas do Judiciário. Isso é uma tarefa de todos os órgãos  
envolvidos com o problema. É necessário atentar para a ressocialização. A
  Justiça é um cenário importante, mas é apenas um dos cenários. É  
preciso integrar os sistemas e ter uma visão menos compartimentada do  
fenômeno.
ConJur — O Ministério Público pode fazer investigações criminais?
 
Mendes — Essa é uma questão que está em aberto. O 
Supremo tem dado respostas tópicas, especificas. Por exemplo, quando o 
Ministério Público exerce a função de controle da polícia, entendendo 
que esse é um dado quase inevitável. Do contrário, nós teríamos uma 
situação de endógena que é a polícia se investigando, o que nem sempre é
 razoável ou plausível de se admitir. Mas há situações mais complexas 
que talvez envolvessem um critério de subsidiariedade. Acredito que a 
lei pudesse nos ajudar mais para definir claramente o quadro 
institucional que a Constituição preconiza e também divisar situações em
 que o trabalho conjunto ou até complementar do Ministério Público 
pudesse ser desempenhado. O grande problema é afirmar que essa 
competência é concorrente. Até porque nós sabemos que, diante de uma 
falta de definição, de quem vai fazer isso, pode haver certa 
manipulação, certa ansiedade por parte de agentes do Ministério Público.
ConJur — É necessário adotar critérios para definir em quais casos ou momentos o MP deve atuar?
 
Mendes — Exatamente. Que tipo de opção preferencial vai
 fazer o agente do Ministério Público? Haverá grupos encarregados dessa 
missão? Isso tudo precisaria de regras e de definições institucionais 
muito mais claras. Eu não vejo dificuldades de se pensar em uma 
atividade do Ministério Público nessa área, mas é preciso que haja 
cuidado sob pena de se criar uma insegurança jurídica. Nós tivemos um 
caso de Habeas Corpus em que alguém era investigado há dois ou três anos
 pelo Ministério Público e soube disso quando se divulgou a notícia no 
jornal. Quando se abre um inquérito contra alguém, se sabe que há um 
inquérito contra alguém. Agora, quando se faz esse tipo de investigação a
 partir da gaveta de um membro do Ministério Público há um quadro de 
total falta de controle, inclusive, do processo de investigação. Então, 
há muitas questões que precisam ser devidamente esclarecidas. Não se 
pode dizer que a investigação por si só é absurda, até porque muitas 
vezes o membro do Ministério Público dispõe de condições adequadas de 
realizar o trabalho. Mas é preciso que haja realmente algumas definições
 legais e institucionais.
ConJur — A União pode ser condenada a indenizar vitimas de erros em investigações policiais?
 
Mendes — A investigação, por si só, não viola as regras
 básicas do Estado de Direito, desde que se saiba que ela tem um motivo 
plausível. Ainda que as pessoas estejam sendo investigadas de práticas 
de atos absolutamente lícitos ou transparentes, se isto não era claro 
desde o início, muitas vezes a investigação até propicia à pessoa a 
oportunidade de esclarecer. Então, não se pode dizer que toda e qualquer
 investigação que resultar, depois, em um juízo de não 
responsabilização, de não responsabilidade do eventual investigado, deve
 resultar em uma condenação por danos no plano cível. Mas temos muitas 
nuances nessas situações, em que nós temos que considerar o plano 
fático. Por exemplo, se não houve precipitação no envolvimento das 
pessoas, se não era possível, a partir de um levantamento preliminar e 
de algum esclarecimento, já pré excluir a acusação. Porque sabemos que o
 inquérito, por si só, causa danos, às vezes maiores, às vezes menores, 
na vida das pessoas. Há impactos sérios.
ConJur — Nos 
últimos anos, o Judiciário vem ocupando um espaço que muitos reclamam 
que seria do Legislativo. Há casos recentes de decisões sobre 
aposentadoria especial, regulamentação do aviso prévio proporcional, 
união homoafetiva. O que provoca esse movimento? A omissão do 
Legislativo?
 
Mendes — Não. Há razões diferentes em cada caso. Nós 
temos um texto constitucional que prestigia imensamente os direitos 
fundamentais na mais variada dimensão possível. E que outorga ao 
Judiciário um papel de garantidor desses direitos fundamentais. Daí, 
então, a inevitabilidade, muitas vezes, de o Judiciário ser cobrado e 
dar respostas para as diversas demandas. Isso acontece em um quadro de A
 a Z. De abusos nas prisões à falta de atendimento na área da saúde. O 
Judiciário atua a partir do reconhecimento de que há um direito 
constitucional assegurado. Aí se reclama: “Ah, o Judiciário está 
causando despesas. Está interferindo na vida administrativa”. Na área da
 saúde tem muito esse tipo de reclamação.
ConJur — Mas a pessoa vai ao Judiciário por causa da omissão do Estado...
 
Mendes — Sim. Será que não estamos executando políticas
 públicas de maneira deficiente? Será que se o Judiciário fosse ausente 
esse quadro não estaria pior? Como vai proceder o juiz diante desse tipo
 de situação? Como agir diante da falta de vagas em UTI, da falta de 
medicamentos, do não atendimento a doentes crônicos? Claro, haverá 
sempre idiossincrasias, peculiaridades. “Ah, deu uma liminar para que 
alguém fosse tratar vitiligo em Cuba”. Para isso, tem remédio 
processual. Mas, na maioria dos casos, nós vemos que há falha na 
prestação do serviço. Agora, há casos de omissão legislativa, de não 
feitura da lei, por longos anos. Há exemplos. O caso do direito de greve
 de servidores públicos, a recente discussão sobre aviso prévio 
proporcional ou sobre a união homoafetiva, que a despeito de vários 
projetos de lei, nunca foi enfrentada, por diversas razões. De 
parâmetros, portanto, estabelecidos pelo próprio texto constitucional, o
 Judiciário acaba por fixar linhas balizadoras das relações, pelo menos 
até que venha um pronunciamento definitivo do Congresso. Por isso, não 
me parece que haja exorbitância. Aqui ou acolá pode haver discrepâncias,
 visões diferentes sobre o assunto. O grande desafio do Judiciário é 
implementar bem uma carta de direitos tão pretensiosa como é essa 
constante da Constituição de 1988, que envolve direitos tradicionais 
como os de liberdade em geral, de caráter negativo, que são 
sistematicamente violados quando vemos, por exemplo, o estado das 
prisões brasileiras. E também os direitos positivos, como o direito à 
educação, à saúde, à assistência social. Todos direitos judicializados.
ConJur
 — Não é a falta de regulamentação dos direitos constitucionais pelo 
Legislativo que acaba pressionando mais por essa judicialização?
 
Mendes — Esse é o ponto. E quando o juiz intervém não 
se pode dizer que ele está fazendo de forma indevida. Embora tenhamos 
que ter consciência de que as intervenções tópicas não sejam, em toda a 
extensão, as mais adequadas. É preciso estimular o desenvolvimento de 
políticas públicas, ter consciência de que talvez uma ação coletiva 
fosse muito mais adequada do que uma ação individual. É melhor organizar
 um serviço público, vamos dizer assim, do que tentar responder à falta 
de Cibalena ou de medicamentos específicos atendendo a cada pedido que 
se formule individualmente. Nesse sentido, às vezes, a intervenção 
judicial tumultua. Mas isso é um aprendizado.
ConJur — Há algo de concreto que o Judiciário possa fazer neste ponto de políticas públicas?
 
Mendes — Podemos ter o auxílio de peritos para decidir 
essas questões na área de saúde. Na minha gestão no CNJ, e a ideia teve 
continuidade com o ministro Peluso, fizemos um plano para tentar criar 
grupo de peritos voluntários que auxiliem o juiz nessas demandas para 
que ele não dê respostas extravagantes, para que saiba de fato quando 
está decidindo sobre um caso grave e que tipo de iniciativa ele pode 
tomar. E há outras questões, que envolvem política de saúde. A ação do 
Judiciário pode acabar sendo desorganizadora, tumultuária, onerosa para 
os cofres públicos. Mas o Estado poderia agir para que os medicamentos 
tivessem preços compatíveis por meio da quebra de patentes ou com 
negociações com as próprias multinacionais, como ocorreu no pacote de 
medicamentos para a Aids.
ConJur — Neste caso, o Brasil se tornou exemplo mundial...
 
Mendes — Exatamente. Agora, isso não pode ser feito 
pelo Judiciário. Isso é política pública. O juiz tem que estar 
consciente de que ele pode estar sendo até cooptado involuntariamente. 
Tivemos na audiência pública que foi realizada aqui no Supremo a 
indicação de que havia fraudes. Laboratórios estimulavam o ajuizamento 
de ações para que determinados medicamentos fossem prescritos. A 
discussão é complexa. Os juízes apenas sabem que existe nos autos. 
Alguém precisa daquele medicamento e se ele não tiver argumentos 
contrários, irá conceder Por falta da implementação devida do serviço.
ConJur
 — No ano passado, o Supremo discutiu em diversas sessões o direito à 
liberdade de manifestação e de expressão. Foi o que aconteceu no 
julgamento da chamada Marcha da Maconha. Quais os limites? É válido 
defender pacificamente qualquer ideia?
 
Mendes — Essa é uma questão extremamente delicada. No 
julgamento, eu chamei a atenção para a necessidade de delimitarmos que 
estávamos discutindo apenas a questão referente à política de 
descriminalização das drogas. Porque podemos ter, daqui a pouco, outros 
tipos de propostas que a própria Constituição não contempla ou até que 
exija uma proteção especifica para determinados valores.
ConJur — Por exemplo?
 
Mendes — Se amanhã ocorre a alguém, por motivação 
religiosa ou ideológica, ou de outra índole, defender a pratica de 
pedofilia, certamente diríamos que isso é abusivo. Então, é preciso 
estabelecer limitações. O próprio Supremo já teve a oportunidade de 
dizer que não se aceitam manifestações racistas ou ataques a 
determinados grupos que são marcados historicamente por discriminação, 
como os judeus. Poderíamos fazer manifestações contra pessoas de 
determinados grupos nas ruas? Temos que ter algum cuidado nessa 
generalização. Os direitos à liberdade de expressão, à liberdade de 
reunião, de imprensa, são direitos de função individual, evidente, mas 
eles têm uma conexão muito clara com o regime democrático. O processo 
democrático se atualiza a partir do exercício desses direitos, tanto é 
que a gente diz que esses direitos são funcionalmente relevantes do 
ponto de vista democrático. Tem uma função democrática importante. 
Agora, se amanhã alguém começar a sugerir agressões ou ataques, ainda 
que de índole ideológica, no plano das idéias, a determinados grupos, 
mas que os expõe ou descrimina, isso não seria razoável dentro de um 
ambiente democrático. Para isso nós devemos estar atentos. E como a 
sociedade é muito complexa e inventa sempre novas situações, precisamos 
ter muito cuidado.
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