Por Fábio Konder Comparato (*)
Com exceção
dos profissionais do foro, ninguém mais se interessa neste País pela
atuação dos magistrados. No teatro político, eles não costumam subir ao
palco, e, quando o fazem, infelizmente nem sempre é para exercer o papel
de juízes, mas algumas vezes de réus. Acontece que sem um Judiciário
independente e eficaz não existe adequado controle do poder e, por
conseguinte, efetiva garantia de respeito aos direitos humanos.
Tomemos,
por exemplo, o caso da Corte de Justiça situada no topo da pirâmide: o
Supremo Tribunal Federal. Seu funcionamento deixa muito a desejar, por
duas razões principais: sua composição e a natureza de suas atribuições.
Em
todas as nossas Constituições Republicanas, segundo o modelo
norte-americano, determinou-se a nomeação dos ministros do Supremo
Tribunal Federal pelo presidente da República, com aprovação do Senado
Federal.
Nos Estados Unidos, esse controle senatorial funciona
adequadamente, já tendo havido a desaprovação de 12 pessoas indicadas
pelo chefe de Estado para a Suprema Corte. Algumas vezes, quando o
presidente dos Estados Unidos percebe que a pessoa por ele escolhida não
será aprovada pelo Senado, retira a indicação. Assim procedeu o
presidente George W. Bush em 2006, quanto à indicação à Suprema Corte de
Harriet Miers, conselheira da Casa Branca.
No Brasil, ao
contrário, até hoje o Senado somente rejeitou uma nomeação para o
Supremo Tribunal Federal. O fato insólito ocorreu no período conturbado
do início da República, quando as arbitrárias intervenções decretadas
por Floriano Peixoto em vários estados suscitaram o acolhimento, pelo
Supremo Tribunal, da doutrina extensiva do habeas corpus, sustentada por
Rui Barbosa.
Os líderes oposicionistas, nos estados sob
intervenção federal, puderam assim escapar da prisão. Furioso, Floriano
resolveu então nomear para preencher uma vaga no Supremo o doutor Barata
Ribeiro, que era seu médico pessoal. Literalmente, não houve violação
do texto constitucional, pois a Carta de 1891 exigia que os cidadãos
nomeados para o STF tivessem "notável saber e reputação"; o que
ninguém podia negar ao doutor Barata Ribeiro. Foi somente pela Emenda
Constitucional de 1926, e em razão daquele episódio, que se resolveu
acrescentar o adjetivo "jurídico" à expressão "notável saber".
Mas
essa qualificação aditiva em nada mudou a prática das nomeações para o
tribunal. Como gostava de contar o grande advogado Evandro Lins e Silva,
quando Getúlio Vargas nomeou para o Supremo o presidente do infame
Tribunal de Segurança Nacional, o escrivão daquele pretório anunciou,
alto e bom som, que era candidato à próxima vaga na mais alta Corte de
Justiça do País; pois, dizia ele, "reputação ilibada ninguém me nega, e notável saber jurídico vem no decreto de nomeação"...
Ora,
o que se vem assistindo ultimamente, de forma constrangedora, é a uma
frenética corrida ao Palácio do Planalto de candidatos ao Supremo
Tribunal, na esperança de serem escolhidos pelo presidente da República.
Há até, como se sabe, quem repita a tentativa várias vezes, após
sucessivas "bolas na trave".
A Constituição Federal de 1988 atribuiu ao Supremo Tribunal Federal, como seu objetivo precípuo, "a guarda da Constituição"
(art. 102). Mas a consecução dessa finalidade maior é simplesmente
obliterada pelo acúmulo de atribuições daquela Corte (aquilo que os
juristas denominam "competência") para julgar processos de puro interesse individual ou de grupos privados.
Segundo
informa a secretaria do Supremo Tribunal Federal, há atualmente em
andamento naquela Corte mais de 68 mil processos. O que perfaz,
abstratamente, a média aproximada de mais de 6 mil por ministro. Tal
significa na prática que, tirante alguns casos especiais, os processos
levam em média uma dezena de anos para ser julgados.
O que fazer,
então? Certamente, não podemos nos resignar a "tocar um tango
argentino", como sugeriu um poema de Manuel Bandeira; muito embora a
situação judiciária no país vizinho pareça bem melhor que a nossa.
Eis por que proponho a transformação do atual Supremo Tribunal Federal em uma Corte Constitucional.
Ela
seria composta de 15 ministros, nomeados pelo presidente do Congresso
Nacional, após aprovação de seus nomes pela maioria absoluta dos
integrantes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, a partir de
listas tríplices de candidatos oriundos da magistratura, do Ministério
Público e da advocacia. Tais listas seriam elaboradas, respectivamente,
pelo Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Nacional do Ministério
Público e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
Transitoriamente,
os atuais ministros do Supremo Tribunal Federal passariam a compor a
Corte Constitucional, com o acréscimo de mais quatro novos membros,
nomeados como indicado acima.
O novo sistema de nomeação tornaria
muito difícil, senão impossível, o exercício com êxito de alguma
atividade lobista, além de estabelecer, já de início, uma seleção de
candidatos segundo um presumível saber jurídico.
A competência da
Corte Constitucional seria limitada às causas que dissessem respeito
diretamente à interpretação e aplicação da Constituição, transferindo-se
todas as demais à competência do Superior Tribunal de Justiça.
Esse
último passaria a ter uma composição semelhante à da Corte
Constitucional, mas contaria doravante com um mínimo de 60 ministros; ou
seja, quase o dobro do fixado atualmente na Constituição.
Bem
sei que essa proposta, se oficializada, suscitará, segundo nossa
inveterada tradição antirrepublicana, a resistência de todos aqueles que
só cuidam de proteger seus interesses próprios, virando as costas ao
bem comum. Mas o essencial é pôr desde logo o dedo na ferida e exigir o
indispensável tratamento terapêutico.
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(*) Advogado e jurista, é professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
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